“Todos são iguais perante a lei”. A Constituição Brasileira estabelece que todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país são iguais perante a lei, mas o foro por prerrogativa de função, mais conhecido como foro privilegiado, pode ser considerado uma exceção a essa regra.
O foro privilegiado se refere a como as autoridades são julgadas. Ele garante tratamentos diferentes aos réus de processos, a depender da importância do cargo da pessoa. Esse direito determina que algumas autoridades são julgadas apenas em cortes superiores (especiais), ao contrário do cidadão comum, que é julgado pelo Poder Judiciário comum.
Foro privilegiado não é um privilégio de uma pessoa, mas do cargo público que ela ocupa. Ou seja, assim que as pessoas deixam o cargo, elas perdem esse direito.
Esse mecanismo jurídico foi criado com a ideia de proteger o exercício de determinada função ou mandato. Foi na Constituição de 1988 que o sistema de atribuição de foros privilegiados incluiu uma ampla gama de autoridades. No contexto da época, ele foi reforçado sob o argumento de preservar a democracia e impedir a volta de práticas da ditadura militar, como eventuais perseguições políticas.
A premissa fundamental desse direito é a garantia da estabilidade necessária ao exercício das funções públicas ao assegurar o máximo de imparcialidade nos julgamentos.
Caso não existisse o foro privilegiado, um acusado de cometer um crime deveria ser julgado pelo juiz do local onde o fato ocorreu, independentemente do cargo que ele exerça. Com o foro privilegiado, evita-se que o alvo da investigação não seja pressionado por quem queira prejudicá-lo ou, ainda, evita que a decisão de um juiz seja fruto de uma pressão de um determinado político local. Desta forma, no entendimento da lei, pode-se manter a estabilidade do país, garantindo um julgamento justo e imparcial.
Possuem esse direito o Presidente da República, os ministros (civis e militares), todos os parlamentares do Congresso Nacional, prefeitos, governadores dos Estados e do Distrito Federal, chefes de missão diplomática (embaixadores), integrantes do Poder Judiciário, do Tribunal de Contas da União (TCU) e todos os membros do Ministério Público.
A análise de processos envolvendo pessoas que gozam de foro privilegiado é designada a órgãos superiores, como o Supremo Tribunal Federal (STF), o Senado ou as Câmaras Legislativas.
O STF é responsável por julgar presidentes, ministros e parlamentares. Ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), cabem os casos que envolvem governadores, membros de tribunais de contas e desembargadores dos Tribunais de Justiça. Os prefeitos são julgados pelos Tribunais de Justiça estaduais. Já os tribunais regionais federais julgam os membros do Ministério Público Federal e os juízes federais de primeira instância.
Foro privilegiado e impunidade
O Brasil é considerado por especialistas como o país com mais autoridades resguardadas pelo foro especial no mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, nem o presidente tem direito a esse benefício.
O levantamento mais recente feito pela Associação dos Juízes Federais (Ajufe) mostrou que mais 45 mil pessoas são beneficiadas pelo foro especial nas diversas instâncias do Poder Judiciário. A estimativa feita pela força-tarefa da Operação Lava-Jato em 2015 chegou ao número de 22 mil pessoas.
O foro especial é alvo de crítica de muitos juristas. A Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) defende o fim total do foro privilegiado. Para Roberto Veloso, presidente da Ajufe, “todos devem ter foro na primeira instância a partir da competência dos crimes cometidos”. Outros juristas defendem um “enxugamento” dos beneficiados, de forma que o mecanismo seja concebido apenas a poucas autoridades.
Um dos argumentos contra o mecanismo é que ele seria um privilégio que fere o princípio de igualdade da Carta Magna, que garante que todos os cidadãos brasileiros são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza ou regalias. Os defensores do foro privilegiado entendem que a regra não é concedida à pessoa, mas ao cargo que ela exerce.
Outra questão é que o foro privilegiado estimularia a impunidade e a condenação de políticos pela Justiça. Isso porque os tribunais de instâncias superiores não teriam estrutura para julgar o imenso número de processos relacionados a agentes públicos com foro privilegiado.
O prazo médio para recebimento de uma denúncia no STF é de 617 dias. Ao contar com a morosidade do sistema, o julgado poderia “fugir da justiça” até o crime prescrever e ser arquivado por excesso de tempo. Ou seja, o Estado perde o prazo para julgá-lo e com isso provocaria a impunidade.
A taxa de processos que o Supremo não consegue julgar é muito alta. Uma recente pesquisa da FGV mostra que 68% das ações penais concluídas no STF entre 2011 e 2016 prescreveram ou foram repassadas para instâncias inferiores porque a autoridade em questão deixou o cargo.
No entanto, o julgamento em instâncias inferiores não significa a garantia de um julgamento rápido. Quando ele começa na primeira instância, há uma maior possibilidade de recursos. Já a pessoa condenada pelo STF não tem mais a quem recorrer, uma vez que ele é a última instância da Justiça Federal.
No caso do escândalo de corrupção do “mensalão", por exemplo, 25 autoridades foram punidas pelo Supremo em 2012, enquanto alguns casos do mesmo escândalo que ficaram em instâncias inferiores até hoje não foram adiante.
Operação Lava Jato
A Operação Lava Jato reacendeu o debate sobre o fim do foro privilegiado por colocar em xeque a capacidade do STF de analisar um volume tão expressivo de investigações criminais por corrupção. A investigação policial envolve dezenas de parlamentares com foro especial em denúncias de recebimento de propinas e lavagem de dinheiro.
Dois fatos recentes também colocaram em pauta a questão do foro.
Em 2015, quando a então presidenta Dilma Rousseff indicou o ex-presidente Lula para substituir Jaques Wagner como ministro na Casa Civil, ela foi acusada de tentar proteger seu antecessor, usando o foro especial. Isso porque Lula era alvo da Operação Lava Jato e poderia ser julgado pelo juiz Sergio Moro. Em decisão do Supremo Tribunal Federal, o ex-presidente foi afastado do cargo.
Em fevereiro de 2017, Moreira Franco foi nomeado ministro da Secretaria Geral da Presidência. A medida foi anunciada pelo presidente Michel Temer na mesma semana em que o STF homologou as delações premiadas de executivos da empreiteira Odebrecht, em que Moreira Franco é mencionado como operador de propinas. O STF validou a posse alegando que a nomeação por si só não indicava desvio de finalidade.
Recentemente, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, fez uma lista de abertura de investigação contra parlamentares no âmbito da Operação Lava Jato, com base nos acordos de delação premiada de executivos da Odebrecht. São 83 pedidos de investigação contra políticos com foro no STF, como deputados e senadores. A lista reúne nomes de cinco partidos: PMDB, PP, PT, PTB e PSDB.
Para procuradores e delegados da Lava Jato, o excesso de processos pode inviabilizar os resultados da operação, em decorrência da demora no julgamento. A avaliação é de que, sem alterações legais para que o rito do processo seja mais rápido, a estrutura do Supremo não dará conta de julgar os processos de combate à corrupção.
Em entrevista ao Correio Braziliense, o delegado Adriano Anselmo afirmou que “o foro privilegiado é um salvo conduto para a impunidade. É inaceitável que no Brasil tantas castas se perpetuem com esse privilégio, incompatível com o princípio republicano. O cenário que se vê no país hoje é, em grande parte, fruto do foro privilegiado. Após três anos de operação, não temos perspectiva, por menor que seja, de casos concluídos a curto prazo envolvendo essas autoridades”.
Projetos de lei
Ao todo, 11 propostas de emendas à Constituição (PECs) estão tramitando na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJ).
O debate sobre o foro foi reaberto no Senado em fevereiro deste ano, depois da apresentação, pelo senador Romero Jucá (PMDB-RR), de uma proposta de PEC que visava dar imunidade aos ocupantes de cargos na linha sucessória presidencial, mesmo para atos cometidos antes da vigência do mandato. Pela Constituição, apenas o presidente da República tem esse benefício atualmente.
Para Jucá, seria legítimo dar o mesmo tratamento aos presidentes dos três poderes para garantir maior equilíbrio às instituições. “Os presidentes não podem ficar suscetíveis a sair do cargo por conta de uma decisão pessoal do procurador-geral da República. Acho que isso não é consistente com a harmonia dos poderes”, afirmou o senador à imprensa.
O projeto de Jucá beneficiaria diretamente o presidente do Senado, Eunicio Oliveira (PMDB-CE) e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), dando a eles a mesma imunidade do presidente da República, Michel Temer. Os dois são citados em delações premiadas no âmbito da Lava Jato. A proposta foi arquivada.
Em março deste ano, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso enviou ao plenário da Corte uma proposta que discute a restrição do foro privilegiado para deputados federais, senadores e ministros.
No despacho, o ministro diz que os detentores de foro privilegiado somente devem responder a processos criminais no STF se os fatos imputados a eles ocorram durante o mandato. No caso de fatos que ocorreram antes da posse, a competência para julgamento seria da Primeira Instância da Justiça. Por esse entendimento, os processos da Lava Jato “desceriam” para a Justiça Comum.
Barroso argumenta que o privilégio precisa ser revisto por dificultar investigações de autoridades e colaborar para que haja impunidade. Ele propôs ainda que fosse criada uma vara especial em Brasília, vinculada ao STF, para processar casos de foro privilegiado. "Não é preciso prosseguir para demonstrar a necessidade imperativa de revisão do sistema. Há problemas associados à morosidade, à impunidade e à impropriedade de uma Suprema Corte ocupar-se como primeira instância de centenas de processos criminais. Não é assim em parte alguma do mundo democrático".
Por Carolina Cunha, da Novelo Comunicação